Há espaço para o conceito de neopopulismo no século XXI?por Rodrigo HerreroO avanço de lideranças esquerdistas (ou atribuídas como tal) na América Latina nos últimos anos contribuiu para o surgimento de uma definição teórica, muito apregoada e aceita nos meios de comunicação brasileiros e defendida pelos defensores da cartilha neoliberal, de que esses governos não seriam necessariamente de esquerda ou, se fossem, teriam um caráter predominantemente populista. Mas, sem as condições de aliança de classe como no passado, muito menos a situação favorável de industrialização do período áureo do populismo, entre 1940 e 1960.
O momento atual seria de aproveitar as massas marginalizadas, conceber políticas assistencialistas para beneficiá-las e, com os elementos personalistas e carismáticos de antigamente, estaria pronta a receita do neopopulismo. Se a esquerda identificou o neoliberalismo para designar as políticas de abertura de mercado e controle deste sobre a economia, sem a mão pesada do Estado dirigindo os rumos, a direita tratou logo de cunhar o neopopulismo, sem o mesmo cuidado teórico, para designar qualquer coisa que não seja o capitalismo em bases liberais radicais.
E podemos ver claramente a conceituação do que seria o neopopulismo no artigo do historiador Boris Fausto: “O neopopulismo emerge em outra época, no âmbito da globalização, que se tornou nítida a partir dos anos 1980. Em linhas gerais, o Estado mudou de configuração, sem deixar de ter relevância (...) e a base de apoio ao populismo mudou. A burguesia internacionalizada ou desfeita abandonou o barco populista e a fonte de apoio popular se alterou. O neopopulismo não se assenta sobre a classe trabalhadora organizada, hoje sem a importância de outros tempos, mas, sobretudo, em massas marginalizadas, predominantemente urbanas
[1]”.
Isso é até considerado compreensível, devido ao fato de que, com o “fim da história” cunhado por Francis Fukuyama, o único modelo que deveria prevalecer na sociedade mundial era o capitalismo vestido dessa roupagem neoliberal. E, qualquer coisa oposta a disso, de acordo com o discurso único adotado, deveria ser caracterizado como atrasado, negativo, ruim para o mundo. E, nada melhor do que chamar qualquer alternativa à esquerda – considerada morta após a queda da União Soviética e do muro de Berlim na Alemanha – de populista, ou neopopulista, pois são conceitos visto de olhos tortos por boa parte da opinião pública e pela academia.
Ou seja, uma forma de demonizar os políticos que privilegiam políticas públicas em prol das massas mais carentes e que capitalizam os lucros dessas medidas, como todo governo costuma fazer, na verdade. Mas não, se tem uma “queda” esquerdista, é neopopulista, não é um governo democrático, de respeito às instituições (ou seria à burguesia?), etc. Falando de outros países que não possuem essa suposta inclinação populista, como no caso do Chile (o queridinho da intelectualidade) e sua Concertación
[2] e a opção – que acabou vencendo – de Felipe Calderón no México
[3], Boris Fausto indica essa posição: “Não se trata aqui de endossar simplesmente as figuras antipopulistas, mas todas elas, com seus méritos e defeitos, têm compromisso com a democracia”.
O discurso único impõe a necessidade de considerar perfeita apenas a alternativa neoliberal, como a panacéia para todos os problemas, o que, na prática, principalmente com o fiasco Consenso de Washington
[4] adotado na América Latina na década passada, percebemos que tudo não passa de ideologia, ao contrário do que é defendido por esse modelo.
Populismo à moda antigaO populismo marcou presença forte na história da América Latina durante as décadas de 30 a 60 do século passado e é caracterizado por Torcuato S. Di Tella, desta forma: “O populismo, por conseguinte, é um movimento político, com forte apoio popular, com a participação de setores de classes não operárias com importante influência no partido e que sustenta uma ideologia anti-status quo. Suas fontes de força são: I) elite localizada nos níveis médios ou altos da estratificação e dotada de motivações anti-status quo; II) massa mobilizada formada em resultado da ‘revolução de aspirações’; e III) uma ideologia ou estado emocional difundido que favoreça a comunicação entre líderes e seguidores e crie um entusiasmo coletivo
[5]”.
As principais lideranças desse período são: Juan Domingo Perón
[6], Lázaro Cardenas
[7] e Getúlio Vargas
[8]. Eles arrastavam multidões, levando todos para o alcance de seus objetivos, voltados, principalmente, para os menos favorecidos. Tal relação entre o povo e o “Salvador da Pátria”, que resolveria todos os problemas da nação, era quase messiânica, tanto que Perón até hoje tem status de deus na Argentina
[9] e Vargas ficou para a história conhecido como o “pai dos pobres”.
Essa aliança política entre a liderança carismática e as massas tornou-se possível de ser sustentada com avanços econômicos, por conta da reunião de três atores importantes: o Estado, que iria prover todas as condições para o crescimento e o desenvolvimento nacional, investindo na indústria; a burguesia industrial, que seria a beneficiada com esse foco, alimentando cada vez mais o crescimento, aumentando o número de contratação de pessoal; e a classe trabalhadora, que abriria mão de algumas reivindicações mais profundas para obter mais emprego e melhores salários para suas categorias.
Os movimentos populistas, considerados por alguns como desvios do rumo ao socialismo e, por outros, como fato importante para o desenvolvimento industrial desses países subdesenvolvidos, que tinham como base econômica somente o modelo agro-exportador, são vistos por Gino Germani
[10] como “fenômenos sócio-culturais e políticos fundamentais e característicos da época de transição da sociedade tradicional à sociedade urbano-industrial”. Octavio Ianni complementa dizendo que essa realidade complexa está mudando, mas ainda no meio de um processo de transição: “Pouco a pouco, reduz-se o peso do tradicional e cresce a importância do moderno. No limite estaria a sociedade urbano-industrial, democrática, racional, onde não haveria nem demagogos nem carismáticos. No curso da transição, entretanto, surgem os movimentos populistas, ou nacional-populares, compostos principalmente de amplas massas de escassa ou nenhuma experiência no mundo urbano”.
Neopopulismo existe?A exposição acima demonstra que o populismo é datado de uma época específica de nossa história, com peculiaridades próprias de um tempo em que os países eram plenamente subdesenvolvidos e a alternativa que foi concebida naquele período era a de um desenvolvimento industrial pautado pelo controle do Estado sob a égide de uma liderança personalista. Portanto, por mais que se queira modificar o conteúdo para mantê-lo dentro de uma forma inapropriada, não dá para dizer que vivemos numa era neopopulista na América Latina. Esse termo é totalmente descabido de nexo teórico, cheira mais a discurso ideológico de grupos que se sentem ameaçados com o avanço de setores progressistas, esquerdistas, que trazem propostas de melhorias para a população carente desses países.
É uma grande tentação para os intelectuais de direita ou neoliberais ou qualquer outra coisa, afirmar que governos que atuam visando o bem-estar do povo são neopopulistas, nacionalistas, só porque eles se preocupam com as massas e fazem políticas voltadas às elas. “Para certas correntes ditas de esquerda, o neopopulismo (cuja expressão máxima é o regime de Hugo Chávez, na Venezuela) representa um novo caminho para o socialismo, uma ‘onda vermelha’ que se espalha pela América Latina, como se Deus escrevesse certo por linhas tortas”, escreve Boris Fausto.
A frase acima quer colocar na boca da esquerda o medo que a elite (incluindo a intelectual) possui de um avanço de governos esquerdistas como o de Chávez e a influência que isso pode ter na região. Aí, prefere-se, pelo discurso ideológico, apontar que esses governos são populistas a entendê-los como alternativas de governança ao projeto neoliberal. Mas isso é que eles não querem fazer mesmo, pois confiam cegamente no capitalismo como única opção, apesar de todas as mazelas vistas na América Latina com a aplicação desse modelo nos últimos vinte e poucos anos.
O escritor cubano, Carlos Alberto Montaner, vai mais longe em seu artigo e reforça ainda mais a tese colocada nesse texto: “Neopopulismo é o modo elegante como a região chama a esquerda terceiro-mundista. O que é isso? É uma tendência ideológica e um modo de governar que amalgamam todos os erros e vícios políticos alegre e inutilmente praticado pelos latino-americanos ao longo do século 20: caudilhismo, clientelismo, estatismo, coletivismo e antiamericanismo, aos quais, em certos países com forte presença indígena, agrega-se hoje o rancoroso componente indigenista
[11]”.
Como se vê, é fácil colocar tudo dentro de um mesmo saco e atribuir-lhe um valor igual a questões diferentes. No entanto, cada país deve ser analisado separadamente. Não dá para dizer que Hugo Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia, Lula no Brasil, Tabaré Vasquez no Uruguai, e López Obrador e Ollanta Humalla, caso fossem eleitos, respectivamente, no México e no Peru, são todos neopopulistas, esquerdistas, anti-democráticos, que se aproveitam dos pobres para ganharem vantagem nas próximas eleições e fortalecer seu poder de forma hegemônica no Estado. É preciso diferenciar o discurso sério daquele único, que julga tudo como uma coisa só e imprestável.
Também não dá para afirmar que esses governos são revolucionários, que propõem um caminho para o socialismo. No caso brasileiro, por exemplo, é perceptível o rumo do governo Lula que não tem nada de esquerdista, populista, pois atende, cada vez mais, aos interesses da burguesia, apesar de dar migalhas às parcelas marginalizadas da sociedade. Seu pacto não é apenas com os desfavorecidos, pois ele depende da base burguesa nacional e internacional para se manter na presidência, o que inviabiliza, de cara, o tal conceito neopopulista, já que sua sustentação ocorre com o compromisso aos acordos internacionais e com o lucro dos bancos, por exemplo.
A briga na Bolívia, a princípio, tem mais cunho étnico e de classes do que um neopopulismo. Isso porque, Evo tenta governar para a parcela mais excluída da história da Bolívia, que são os índios, mais da metade da população daquele país. E recebem, em contrapartida, a oposição da burguesia industrial de Santa Cruz de La Sierra e região, que deseja maior autonomia para seus departamentos
[12]. Chávez, por sua vez, superou a oposição local e tem um forte apoio da população, o que seduz qualquer teórico a classificar como neopopulista. Mas não há apenas massas amorfas recebendo benefícios do governo, isso é subestimar e muito a participação do povo venezuelano no processo histórico que está se desenvolvendo naquele país. Graças a participação popular, os resultados na educação, na saúde, avançam de forma significativa e trazem esperança, na prática, para as classes menos favorecidas que não conseguiam observar progressos antes dos chavistas conquistarem o poder, de forma legítima, diga-se, nas urnas.
Por tudo isso, dizer que um governo é neopopulista por ter um líder que discursa muitas vezes e faz política para os pobres é de um reducionismo e também de uma leviandade sem tamanho. Por isso, acredito que esse termo “neopopulismo” nem deveria existir, muito menos ser aplicado no século XXI, pois sua fundamentação teórica não se sustenta numa análise profunda dos fatos. Essa palavra deve ser jogada na lata de lixo da história, assim como as experiências neoliberais que, essas sim, afundaram a América Latina nos últimos anos e ainda persistem em vigorar em certos países, como o Brasil, atravancando um desenvolvimento elevado. Até por esse exemplo brasileiro, não dá para dizer que as propostas atuais de governos latino-americanos sejam a solução final, pois não são. Contudo, não devem ser confundidas com algo que também não se enquadram, apenas para atender a interesses de classe de quem define de forma a distorcida as coisas.
[1] FAUSTO, Boris. O neopopulismo na América Latina. Folha de S. Paulo, 17 de fevereiro de 2006.
[2] Aliança entre o partido socialista e o partido democrata-cristão, que governa o Chile há 16 anos, desde o fim da ditadura de Pinochet.
[3] Felipe Calderón (Partido da Ação Nacional) venceu as eleições de 1º de julho, superando seu opositor, López Obrador (Partido da Revolução Democrática), este, considerado populista pela maioria da imprensa internacional e brasileira. Até agora, Obrador contesta o resultado final e mobiliza sua militância para uma recontagem dos votos.
[4] Documento criado a partir de uma reunião em 1989 na capital dos Estados Unidos entre acadêmicos e economistas estadunidense, funcionários do governo, do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI). Neste documento rezam as seguintes “recomendações”: disciplina fiscal, reforma tributária, taxas de juros positivas determinadas pelo mercado, câmbio competitivo, desenvolvimento de políticas comerciais liberais, maior abertura ao investimento estrangeiro, privatização, profunda desregulamentação, proteção à propriedade privada.
[5] TELLA, Torcuato S. Di apud IANNI, Octavio. A Formação do Estado Populista na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
[6] Perón presidiu a Argentina entre 1946 a 1955.
[7] Cardenas comandou o México entre 1934 a 1940.
[8] Vargas foi presidente em dois períodos: 1930-1945 e 1951-1954.
[9] Como exemplo, o partido criado por ele não é conhecido na Argentina como Justicialista, mas sim, peronista.
[10] Octavio Ianni usa como referência de Germani o texto Democracia Representativa y Clases Populares em la América Latina, publicado por Alain Touraine y Gino Germani, América del Sur: Um problema Nuevo, Barcelona: Editorial Nova Terra, 1965.
[11] MONTANER, Carlos Alberto. O capitalismo andino-amazônico e suas criaturas. O Estado de S. Paulo, 20 de fevereiro de 2006.
[12] Departamentos podem ser entendidos no Brasil como os Estados.
Observação: Texto feito para a Pós-Graduação de Política e Relações Internacionais da Fundação Escolaa de Sociologia e Política de São Paulo (
FESP) em 2006 e publicado no mesmo ano no
Rabisco.